S.O.S

26.01.24

Eu queria poder salvar a sua vida.
Eu juro, eu queria muito, muito.
Queria te tirar do buraco, te resgatar dessa área sombria, arrancar essa dor de dentro do teu peito com os meus próprios braços e te apontar o caminho mais leve a seguir. Eu queria te falar palavras mágicas que fossem  te fazer sentir melhor, que fossem te preencher inteira de felicidade.

Mas eu não posso.

Eu não disse que não quero, é que eu não posso. Não consigo. Não sei o que fazer, não sinto que tenho esse poder, não consigo alcançar a tua sombra. Eu sou só um grão, como você. E isso também me deixa louca. 

Sinto culpa, mesmo sabendo que essa escuridão não é culpa minha. Do mesmo jeito que a minha escuridão nunca foi culpa sua. Do mesmo jeito que você nunca me tirou da minha escuridão. Eu sei que às vezes não parece, mas eu também passeio pela corda bamba dessa escuridão o tempo todo. E já caí muitas, muitas vezes. E já quis pular em muitas delas. Já quis acabar com tudo, já quis muito. E de vez em quando ainda quero.

Eu queria que você pudesse me salvar. Você e os outros, eu queria que vocês fossem minha salvação, meu bote salva-vidas. Mas vocês não são. E eu sei que não é porque você não quer, é porque você não pode. Eu sempre tenho que salvar a mim mesma. Toda vez. E toda vez dói. Toda vez me sinto só. Mas toda vez me forço a me resgatar, para conseguir encontrar vocês de novo do outro lado.

Me desculpe por não conseguir te salvar. Mas o que eu puder fazer, o que estiver ao alcance das minhas mãos através desse muro invisível, eu estou disposta a fazer. Eu só preciso que você me diga, porque eu não consigo enxergar através do muro. Eu preciso que você me aponte o que fazer. E se não houver nada que eu possa fazer, eu preciso que você saiba que eu estou logo atrás do muro, logo no final da corda bamba, logo na saída do túnel que não parece ter fim. Eu estou bem no limite de onde consigo ir, torcendo pra que você chegue logo, fazendo orações atrás de orações para que você ganhe mais forças, gritando seu nome, enviando todo o amor que eu tenho. Eu juro que tô aqui, mesmo que você não consiga ver. 

E eu sei que você vai chegar aqui. Eu não tenho a menor dúvida disso. Eu sei, porque eu te enxergo bem maior do que você acha que é. Eu sei que você está caminhando pra cá, mesmo que você tenha a sensação de que está andando em círculos. Eu vejo cada passinho seu. Eu vibro a cada passinho seu. Você vai sair dessa sombra, você vai chegar aqui. E tudo vai ficar bem. Acredita em mim.

Por favor, acredita em mim.




Bicho encanado

12/05/2023

Tem um monstro que mora dentro da minha barriga. 

Ele se mexe muito. Se arrasta, dá cambalhotas, morde, aperta. Às vezes sobe até lá em cima e depois mergulha até lá embaixo. Por vezes, ele é gelado. E é bastante insuportável. 

Esse monstro nasceu junto comigo, ou pelo menos, é a impressão que tenho. Não me lembro de viver sem ele. Ele estava comigo nas primeiras lembranças da escola, quando havia uma tarefa difícil de realizar e que todos pareciam achar extremamente fácil. Ele estava lá quando eu precisava me dirigir à professora e fazia com que minha voz saísse bem baixinha e trêmula. Ele estava lá até nas brincadeiras, principalmente naquelas de brincar cantando no ônibus de passeios.

Nós convivemos no mesmo corpo há mais de trinta anos. Eu sei que ele vai viver e morrer comigo e às vezes chego até a me conformar com isso, com sua presença. Mas outras vezes, é completamente sufocante tê-lo dentro de mim. Eu o sinto subindo pela garganta, se arrastando vagarosamente como uma cobra gorda, preechendo a traqueia, se enrolando ao peito, enchendo todo e qualquer espaço disponível. Eu não respiro. Eu não respiro, não respiro, não respiro e dá vontade de vomitar. Muitas vezes, eu vomito de verdade.

Profissionais já me ajudaram com isso. Sim, existem especialistas no bicho da barriga. Eles me ensinaram a conviver um pouquinho melhor com ele, me ensinaram a desviar a atenção dele quando preciso, a não permitir que ele me impeça de viver. Às vezes dá certo. Mas às vezes eu também sinto uma necessidade de deixá-lo vencer por uma noite e deixo-o preencher todo o espaço da garganta, enquanto eu choro até o outro dia. Choro, choro, choro tanto que me pergunto como ainda não consegui matá-lo afogado. Mas o bicho é forte, às vezes mais forte que eu. Enquanto ele sobrevive, eu morro de pouquinho em pouquinho. 

Hoje eu deixei ele vencer. Me deitei cedo e não dormi, fiquei sentindo sua pele áspera se arrastar dentro de mim até seu gosto amargo aparecer na boca. Deixei que ele me sufocasse. Não sei como será amanhã, não sei o quanto ele vai me apertar, não sei se vai me deixar viver o dia que preciso viver. Mas espero que sim. Espero que ele seja misericordioso comigo e que a gente consiga conviver um pouquinho melhor. Espero que um dia ele não tenha tanta raiva de mim. Espero que um dia eu não tenha tanta raiva de mim.



Adeus, disse ele à flor. Mas a flor não respondeu.

27/12/2022

"Ele julgava nunca mais voltar. E, quando regou pela última vez a flor, e se dispunha a colocá-la sob a redoma, percebeu que estava com vontade de chorar.
Adeus, disse ele à flor. Mas a flor não respondeu."


Hoje eu pensei de novo em ir embora.

Fazia um grande tempo que o pensamento não passava pela minha cabeça. Mas é que às vezes os dias são tão difíceis, as palavras são tão duras, os obstáculos se tornam rochas intransponíveis... A minha cabeça dói e eu perco a minha força. 

Eu nunca tive um caminho para seguir. O que eu sempre fiz foi driblar as rochas para tentar seguir em frente porque os outros me diziam que eu deveria seguir, que eu não podia ir embora, que ir embora é ruim. Mas desistir sempre me pareceu tão mais pacífico... Dói muito continuar. Não é possível quebrar as rochas, apenas desviar. Mas e quando fica apertado demais para desviar, para passar entre elas? Eu queria desistir, parar de seguir em frente. Eu queria ir embora sem ouvir os outros, sem pensar nos outros. Eu só queria parar com tudo isso.

Eu continuo pensando nisso, acho que nunca vou parar. Acho que nunca terá uma saída para mim além dessa. Um dia, as rochas ficarão tão altas e tão próximas umas das outras que eu não terei mais como desviar para seguir em frente. Eu vou ter que ir embora. Eu vou ter que parar de ouvir vocês e ir embora, entende? Não é minha culpa. 
Eu vou ter que ir.


Aquela de setembro

27-09-2022

Pensei em escrever um diário.

Pensei nisso tantas vezes. Para depois olhar para trás e me lembrar de tudo o que esqueço, de todas as vezes em que deixei para lá, em que deixei passar para não estragar as coisas, para não incomodar ninguém. Tantas vezes em que deixei (e ainda deixo) me cutucarem até sangrar, só para que os outros não se incomodem. 

"Tudo bem, não tem problema".
"Tudo bem, eu lido com isso". 
"Tudo bem, não fiquei magoada".

Eu me esqueço de que tenho o direito de me magoar. De que não é a primeira vez. Nem a segunda. Nem a terceira. Me esqueço de que quem me aponta o dedo sujo, mexeu em sujeira primeiro, quem me julga, tem condenações prévias, quem me ataca, tem o teto envidraçado. Mas eu não sei contra-atacar. Eu não sei tirar a mágoa de dentro de mim e transformá-la em defesa, em justiça. Eu estou sozinha e não sei me proteger.

Procuro abrigo em mim mesma, no meu silêncio, porque sei que não adianta tentar falar. Não vão me ouvir. Não tem ninguém para me ajudar, para me confortar, para me cuidar. Os últimos tempos foram difíceis e me deixaram cada vez mais sozinha. Preciso constantemente me lembrar do que realmente importa, de onde realmente está o meu futuro. De onde está o meu objetivo. Preciso constantemente me lembrar de que as escolhas são minhas e ninguém tem o direito de julgá-las.

Eu deveria escrever um diário para não me esquecer.







O corpo não desfaz cicatrizes

02/06/2022


Ela me contou que quando tinha três anos de idade, um ferro de passar roupas caiu em sua perna e queimou a sua pele. Décadas depois, ela ainda tem a cicatriz. Não dói.

Mas a pele ficou repuxada. Marcada. 

"Quando passo a mão, eu sinto o relevo da cicatriz. Vejo, toco, sei que está lá e me lembro do que aconteceu. Mas o importante é que eu não deixei de andar por causa dela. É como a sua cicatriz dentro de você, entende?"

E eu entendo. É bom ouvir isso, ouvir alguém dizer que vê minha cicatriz. Que eu tenho sim uma cicatriz e que é perfeitamente normal que às vezes eu passe a mão sobre ela e ainda a sinta. Muita gente não entende isso, por ser marca antiga, por ser uma marca invisível. Por não ser algo palpável. Mas eu sei que ela está lá. Eu sinto que ela está ali.

"O corpo não desfaz cicatrizes."

Dificilmente eu me lembro dela, mas às vezes acontece de passar a mão sem querer. E eu estou aprendendo a não ter vergonha dela, a não ter vergonha de dizer que, quando sinto seu relevo, eu me lembro do ardor. Doeu demais, sabe? Acho que pouca gente sabe. Acho que só quem tem uma dessas, uma igual a minha, sabe. Dói demais e às vezes a gente se lembra da dor, e às vezes a gente chora um pouquinho de novo. Mas não tem problema, porque dor de alma é assim mesmo, a gente tem o direito de chorar tudo de novo de vez em quando. E depois a gente continua andando, porque a cicatriz, de alma ou de ferro, não impede a gente de andar.

 Ninguém mais me impede de andar.






O Coelho Branco

25/12/2021

But I knew you'd linger like a tattoo kiss
I knew you'd haunt all of my what-ifs
The smell of smoke would hang around this long
'Cause I knew everything when I was young.


Meus olhos pesam como se a noite fosse mais escura do que realmente está. Não é tão tarde assim ainda. Me pergunto por que sinto tanto sono hoje, se há pouco tempo passava as noites em claro e sorria durante o dia...

Mas então me lembro de que não foi há pouco. Já faz tempo... Já faz tempo demais. Eu tentei segurar o tempo em minhas mãos, mas o tempo é areia. Escorre por entre os dedos, por entre as frestas, escapa das minhas garras, se esquiva pelos cantos. Então eu parei de tentar. Passei a assistir. Hoje assisto o tempo correndo absurdamente, fora do meu controle, como naquele livro em que o coelho estava atrasado, aquele livro que li há tanto tempo para... Para tentar ser incrível como ela.

Será que perdi tempo tentando ser como as outras? Será que me esqueci de olhar para dentro de mim enquanto ainda havia tempo? Não importa mais, tudo acabou. Tudo acabou há tanto tempo e, no entanto, não consigo deixar o tempo passar. Como se um grãozinho dele estivesse grudado em minha mão, como areia. Tento mostrar que não sou mais aquela menina que tentava impressionar em vão, mas será que não sou mesmo? Eu cresci, eu encontrei alguns fios de cabelos brancos, eu construí uma estrada que passa por cima dos meus medos e ando por ela corajosamente, eu dei as mãos e sei que não vou soltar, eu escrevi um livro inteiro sobre você e te matei no final. Eu vejo que o tempo passou. Mas por que então é tão difícil ficar quieta e fazer as pazes com o que ficou para trás?

Eu não quero que o tempo volte. Não quero de verdade. Mas eu queria que ele não tivesse passado, queria ter ficado estática na linha do tempo, na época em que as noites em claro me traziam sorrisos e não dores de cabeça e olhos ardendo. Mas o tempo passou, a Wendy cresceu. O tempo passou, correu, virou as costas para mim e agora eu preciso virar as costas para ele. Eu sei disso. Eu vou fazer isso.

E a primeira coisa é parar de falar sobre ele, o tempo. Me esqueci de que ele é personagem do livro, e que portanto, também deveria ter sido morto. Ele já não é o que era. A contagem dos dias e os anos bissextos já não são mais o que eram, eu nem ao menos sei quando fevereiro terá um dia a mais. Eu estou deixando que ele passe, mesmo que doa às vezes. 

Eu vou deixar que a noite de hoje passe, mesmo que doa às vezes.



É muito difícil viver dentro da minha cabeça

02/06/2021


Uma vez minha mãe me disse que a Bíblia diz que esse mundo não é um lugar bom para se viver mesmo. Que Deus tem outro lugar pra gente, mas que é só pra depois, e que aquele negócio de os humilhados serem exaltados é só depois da morte.

Diferente da minha mãe, eu não sou grande seguidora da Bíblia ou de qualquer outro livro sagrado, mas eu tenho que concordar com essa parte, tá cada vez mais difícil ficar por aqui e eu me lembro desse diálogo com mais frequência do que costumava me lembrar antigamente. Hoje é uma daquelas noites difíceis, um pouco mais difíceis do que o normal. 

É muito difícil viver dentro da minha cabeça - e nesse mundo aqui de fora também. É muito difícil viver todos os dias com esse sentimento de urgência dentro do peito, com essa certeza de que tudo vai dar errado, com esse temor de que o pior está sempre por vir, está sempre me esperando virar a esquina, está sempre chegando e me tomando inteira pelo medo, me paralisando, me sugando, me consumindo.

Meu Deus, eu quero morrer, eu quero morrer, mas eu não quero morrer, tem tanta gente morrendo agora, eu não quero morrer, eu não posso morrer, não agora. Eu só quero que se abra um buraco no chão para eu entrar lá dentro e me esconder do mundo, me esconder das pessoas, me esconder das expectativas, das responsabilidades, da luta interna eterna. Será que eu posso morrer só um pouquinho, só por hoje? Talvez por amanhã também. Será que eu posso morrer só um pouquinho, por uma semana ou duas?

Eu não sei se isso vai passar de verdade, nem nessa vida, nem na outra. Eu não sei se é só fase, se foi só um tropeço, se tá tudo bem, se é assim mesmo, se já vai ficar tudo bem, vê? Eu não posso ter certeza disso porque minha cabeça não me deixa ter certeza de nada e é só por isso que eu tenho quase certeza de que nunca vai ficar mais fácil, porque ela sempre vai estar aqui, a minha cabeça. 

Será que quando a gente vai para o céu, a gente ganha outra cabeça?



Olhar altivo

    05/05/2021



      Eu amo você.

     Acho que é importante dizer isso, antes de qualquer coisa. Meu amor por você não diminuiu. Não é sobre isso. 

     Mas eu já te admirei mais.


     Às vezes penso que os caminhos que tomamos são incompatíveis. Não sei o que nos levou a isso, se foram caminhos que seguimos sem perceber ou se tínhamos alguma consciência. Acho que estávamos distraídos demais com todo aquele amor e as gargalhadas das tardes de sábado. Mas lá no fundo, no fim do dia, quando a noite chegava e me deixava sozinha, a consciência tomava conta de mim. Eu sabia que o futuro seria assim. Eu temia que o futuro fosse assim.


     E ele chegou, o futuro, como a montanha russa que mora dentro do meu estômago disse que chegaria. E chegou em forma de palavras, que ficaram ecoando em minha cabeça durante a semana inteira. Todas as noites, quando me deito no silêncio, as palavras que você disse gritam em minha cabeça. E elas machucam. Elas me ferem. 


     Sei que você não tem a menor ideia desses machucados que estão dentro de mim, que eu não consigo expor. Suas palavras aparentemente não eram ofensivas. Você nunca disse nada para me ferir. Pelo contrário, você sempre me cuidou. Mas as suas palavras me mostraram que aquelas mudanças que eu sempre temi, aquelas que você sempre dizia que não faziam sentido, enfim aconteceram dentro de você. Tudo aquilo que eu tinha medo que você se tornasse, você está se tornando. Eu sinto que está. Eu temo que esteja.


     Não vou dizer que foi por influência de quem diz isso há anos, você não é mais uma criança. Você pode filtrar o que ouve. Você pode refletir, pode discordar. Mas foi uma escolha sua. Você escolheu estar do lado oposto de onde estou, de onde gosto de estar. Agora sinto que criamos um cabo de guerra e sei que não sou forte o bastante para te puxar para o lado de cá, não mais. Acho que um dia eu tive uma grande força, mas quanto mais tempo passo nesse mundo, mais sinto a força esvair-se e agora não sei se sou capaz de te convencer de coisa alguma. Mas eu queria ser, sabe? Eu queria ter força o bastante, queria que você reconhecesse minha força. Queria que reconhecesse o poder das minhas palavras, o poder das palavras dos que amam e dos que tentam ser justos. Queria que pudesse abrir seu coração para ouvir o que penso e o que sinto, sem aquele suspiro pesado e o revirar dos olhos. Queria que me ouvisse de verdade, de um jeito que você parou de ouvir há tempos.


     E eu não queria escrever sobre isso. Eu queria falar. Eu queria ter coragem o bastante para te dizer tudo o que estou sentindo, sem medo de que você entenda errado. Sem medo de que você tome atitudes que eu não quero tomar. Mas o medo agora é algo que vai me acompanhar para sempre, não é? Eu disse que isso aconteceria. Eu disse que esse caminho me traria medo para sempre.


     Mas não se preocupe, o fato de você ter escolhido um lado oposto ao meu não me faz te amar menos. Suas palavras corrosivas não destruíram o meu amor por você.


     Elas destruíram o seu amor por mim?




Nem rei, nem valete

                                
       
  28/12/2020

Tenho notado que passei os últimos dias (ou seriam os últimos meses?) me esforçando para não notar esses detalhes pelos cantos. Essas coisinhas escondidas atrás das cortinas, embaixo dos tapetes, nas frestas das portas. Mas eles estão aqui, eu vejo que estão.

Os velhos hábitos voltaram.

Aquele sentimento antigo de angústia e solidão, aquela amargura que envolve a alma e afoga o coração. Aquela sensação tão familiar.

Quando foi que me deixei convencer de que eu não era mais um Curinga?

Aquele que não é oito, nem nove, nem rei, nem valete. Aquele diferente de todas as cartas do baralho. Que todos enxergam como um bobo da corte e que poderia ser retirado do monte, sem que ninguém sentisse falta. Quando foi que me esqueci disso?

Durante os dias que não foram vividos, mergulhei nas palavras novamente. Nas palavras escritas, nas palavras lidas, em todas as palavras, e foi assim que me lembrei. Mergulhei de novo em tudo o que costumava mergulhar e acho que acabei mergulhando de novo também nas águas movediças. Ops. Foi sem querer, eu juro.

Foi sem querer, mas me afoguei de vez. Continuo vivendo os dias que não foram vividos, enquanto todos os outros já voltaram a viver. Parece que voltei a viver naquele canto. Ninguém enxerga o que eu enxergo, ninguém entende minhas palavras. É como se eu falasse outra língua. Eu tento expressar o que sinto, tento dizer, tento me abrir. Mas eles rolam os olhos. Suspiram com impaciência e eu me fecho de novo. Como nunca me fechei antes, talvez.

Não acho que eu tenha salvação. Eles nunca vão enxergar o que eu enxergo, nunca vão entender o que sinto e como essa angústia é dolorida e como ela me mata pouco a pouco, a cada dia. Eles nunca vão entender. Eu sou um curinga, o bobo da corte, a carta que sobra, aquela que não tem par. Que não tem grupos. Eles são reis, valetes, As, oitos, noves. Eles são eles. Eu não faço parte deles. E eu não faço parte dele.

No fim, quando todo o baralho se esparrama pela mesa, eu não consigo mais ignorar o fato: um dia, eu sei, um dia eu mesma terei que me dar a cartada final.



É que eu sinto muito


12/09/2020




     3:40 da manhã e eu penso que esse deve ser um recorde da insônia.

     Insônia: 

    substantivo feminino

     Falta de sono.

     Talvez eu não devesse chamar de insônia, afinal. O sono existe, ele está lá. Ele está aqui. Ele está na ardência dos olhos durante todo o dia, na dor de cabeça, na resposta para aquela pergunta que de tempos em tempos ele me faz: e esses olhos vermelhos?

     Mas eu deixei de dormir há algum tempo, há alguns meses. Quando voltei a sonhar. Eu deixei de dormir porque os sonhos fervilham em minha cabeça e eu não consigo parar, eu não consigo descansar, eu não consigo deixar de ouvir aquelas vozes que sussurram ilusões. E eu as respondo. Eu respondo que sei que elas estão mentindo, mas que estão mentindo tão docemente que eu quase acredito. Eu quase acredito em todos aqueles sinais do universo. Eu quase acredito que aquele lugar onde eu sempre quis chegar possui um caminho de tijolos amarelos. 

     Mas por fim, eu não me deixo acreditar, é claro. Eu não posso. Preciso matar os sonhos antes que eles me matem por completo, antes que eles tirem meus pés do chão e me façam cair. Porque a queda dessa vez seria insustentável, entende? Eu não sei se você entende realmente. Como eu poderia me explicar?

     É que eu sinto muito.

     Eu sinto tanto, a todo momento, sobre todas essas coisas do futuro, sobre todas aquelas do passado e sobre esse presente pausado, inexistente, insuportável. Eu não sei por quanto tempo mais vou conseguir viver nesse presente inabitável. Eu olho o calendário todos os dias e conto os meses nos dedos da mão, conto os meses que faltam e os meses que já se passaram desde que começamos a viver os dias em que ninguém viveu. Eu conto e faço planos para o futuro. Mil planos de tudo o que vou fazer quando eu voltar, mil planos de tudo o que vai acontecer, mil planos que eu com certeza alcançaria, se ao menos eu... Se eu... Se eu não fosse quem sou.

     Eu tentei me explicar para vocês. Mas minhas palavras são sempre batidas no liquidificador e dependendo da velocidade da mistura, não é possível mesmo distingui-las no final. Eu não os culpo por não me entenderem. É que são tantas as coisas que sinto que nem sei como colocá-las para fora de forma que elas não se embaralhem. Eu sinto muitas coisas que não digo e digo tantas coisas que não escutam.

     Todos os sonhos se transformam em pesadelos ao fim da noite. É assim que tem que ser. É assim que preciso encarar, para que eu nunca me esqueça da realidade da alma humana. Para que eu nunca me esqueça de que não há mão para segurar (e não pelas mãos serem ruins, mas por esse não ser o papel delas). Para que eu nunca me esqueça de que no fim, sempre seremos apenas um e que por isso não devo tentar voar alto. 

     Ninguém vai me segurar para que eu não caia no chão.